Área afetada por desastre Crédito: Freepik
Patricia Boson – Membro do Conselho Deliberativo e Coordenadora da Comissão Técnica de Recursos Hídricos e Saneamento da SME.
Vivemos um cenário de consolidação de novos modelos de governança e governabilidade em temas que requerem a formulação de políticas públicas de relevância, social, econômica e ambiental. São modelos respaldados na transparência e na participação de toda a sociedade, promotores de decisões factíveis e consensuadas, como forma de fazer com que as políticas tenham eficiência, eficácia e durabilidade. Uma boa governança pressupõe governabilidade, único meio de se dar ao Estado capacidade de liderança, sem a qual as decisões tornar-se-iam inócuas. Governabilidade e governança se resumem à capacidade de liderança, representada por um conjunto de atributos ao exercício do governo, ancorados, sem exceção, no saber científico e tecnológico especializado.
Vivemos variações das condições do clima intensas, com trágicas consequências sobre todas as vidas. São condições que exigem políticas públicas para mudanças climáticas, que, como atingem e exigem compreensão de todos, devem ser concebidas tomando-se, como referência, os novos modelos de governança, e, sendo o tema de alta complexidade, requer conhecimento especialista, o que pressupõem agentes públicos capacitados para a governabilidade. Assim, devem ser construídas políticas de mitigação, para diminuir a principal causa das intempéries, bem como as políticas de prevenção, voltadas para diminuir impactos e impactados. Nesse cenário, necessário destacar, por um lado, que as políticas de mitigação, calcadas na busca por menor emissão dos gases de efeito estufa envolvem, além do conhecimento no campo das engenharias, profundas mudanças socioeconômicas; por outro, enfatizar que só as engenharias podem prover ferramentas de adaptação e resiliência.
No contexto, insta consignar que 2024 tem sido um ano bastante representativo de um cenário com muita governança e quase nenhuma governabilidade. Tomemos, como exemplo, o que considero a tradução do que é, genericamente, chamado de mudanças climáticas: a segurança hídrica – águas demais, ou águas de menos.
Em abril, tivemos a tragédia climática do Rio Grande Sul, pela qual assistimos todos o cenário de destruição, que, para muitos gaúchos ainda não é passado, mas presente. Dentre as inúmeras causas para o tamanho do impacto, em todas as análises especializadas, surge o desmantelamento da infraestrutura de proteção, como órgãos reguladores e instrumentos de contingência, como diques e bombas de água. Se o Rio Grande do Sul sofreu com águas demais, no Amazonas, águas de menos ocorreram em 2023, já previstas, assim como fora prevista, por meio de estudos hidrológicos avançados, a seca de 2024, que atinge o Estado e é considerada a pior de todos os tempos, com recordes negativos para região. Novamente, sobressai o inquestionável descaso para com os alertas da ciência e da técnica, total abandono dos poderes executivos para com seus agentes especializados, desvalorizados e insuficientes, que resultou em uma negligência absoluta para com as medidas de prevenção (adaptação e resiliência).
Diante desses acontecimentos, sinais inequívocos de alerta, o espanto maior em 2024 está na discussão rasa sobre o papel das agências reguladoras. Trata-se de um dos pouco redutos, na esfera pública do poder executivo, que conseguem, a duras penas, manter técnicos especialistas gabaritados, mesmo que em número e prestígio cada vez menores. O pior, não bastasse o desmonte, lento e gradual, ao longo das últimas décadas, com cortes de verbas, não reposição de técnicos e o loteamento partidário dos cargos de direção das agências, independente da capacidade técnica dos currículos dos indicados, isso com a cumplicidade do Congresso Nacional, agora se discute a própria existência das agências.
Sim, o impensável acontece. Emponderados pelas redes sociais, lideranças públicas com predominante comportamento demagógico e populista elegem, como inimigos, a ciência e a tecnologia. Tudo vale para legitimar um tipo de interesse ou perspectiva, mesmo que estejam completa ou parcialmente afastadas das leis da física e da natureza. Com efeito, nesse padrão, ciência e tecnologia, executadas pelas engenharias, são “coisas das elites”, que atrapalham quando indicam que a solução para um futuro melhor não é simples, não é barata, não é imediata e pode exigir sacrifícios presentes. Os demagogos, como tais, estão certos, pois, de fato, a engenharia não é populista.
Artigo publicado no Diário do Comércio
https://diariodocomercio.com.br/opiniao/artigo/solucao-mudancas-climaticas-complexo/