Cidades brasileiras: um eterno Lado B


Por Leon Myssior – Arquiteto e urbanista. Diretor executivo na Casamirador

O Brazil Journal é um jornal digital criado por Geraldo Samor, que faz uma cobertura de negócios bastante interessante, e vai além da superfície numa época em que a maioria fica só nas manchetes chamativas. Bom para especialistas e “gente do mercado”, mas melhor ainda para interessados em estar bem informados.

Eles tem lá, também, um videocast, o “Lado B”. O anfitrião é Marcos Lisboa, aquele cara que nunca abriu a boca para falar bobagem. E Marcos não apenas não fala bobagem, quanto destila inteligência com independência, coisa que, além de rara, chega a ser subversiva no atual mar de ignorância que domina a paisagem.

No último dia 10, o convidado foi o jornalista (e agora Diretor do MASP) Raul Juste Lores, falando sobre cidades, urbanismo e mercado imobiliário (Lado B com Raul Juste Lores).

Não vou fazer resenha, claro, mas recomendo assistir ao pingue-pongue de obviedades e declarações de bom senso, como os benefícios do adensamento urbano (acesso a empregos, lazer, educação e cultura, diluição dos custos de infraestrutura e de zeladoria, redução dos custos com transporte de massa, e melhoria da segurança pública), e malefícios do mal uso dos lotes, com regras que obrigam aos afastamentos frontal e laterais (diminuição do aproveitamento do lote, encarecimento dos apartamentos, produção de lojas desinteressantes, piora da segurança pública, aumento no custo condominial).

Não recebam “obviedades” como uma coisa ruim ou depreciativa porque, neste caso, é o exato oposto: “obviedades” são o que está dando certo nas melhores cidades do planeta a mais de 300 anos; são o que já foi ostensivamente testado em vários continentes, em culturas distintas e com climas variados, e funcionando (e, seguramente, muito, muito, muito melhor do que as nossas cidades).

Não há, na história moderna, uma cidade que tenha pervertido esse senso comum e crescido de forma sadia e inclusiva (todos os extratos sociais morando ali, pertinho de tudo), sustentável e entregando empregos, educação, lazer, transporte de massas e cultura a uma distância de 30 minutos ou menos.

Não vale trucar com as cartas de Brasília e Chandigarh como se fossem o zap ou a espadilha. Cidades criadas para servir como sede de governos e local de concentração da burocracia estatal jamais seriam possíveis sem verbas ilimitadas de manutenção ao longo das últimas 6 décadas (7 décadas para Chandigarh).

Essas cidades são o oposto de sustentáveis, com sistema de transporte de massas limitadíssimo em alcance e abrangência (quando tem), um custo de zeladoria proibitivo e totalmente incompatível com a arrecadação (a real e a possível, à base de ITBI, ISS e IPTU), e um espalhamento incrivelmente grande provocando uma densidade geográfica absurdamente baixa.

Use a carta de Washington que, mesmo tendo sido concebida como sede de governo e local de concentração da burocracia estatal, jamais se afastou dessas “obviedades” e do conhecimento sobre cidades desenvolvido pelos europeus. Conseguiu crescer bem, atenta aos desafios e soluções reais (promovendo a décadas, inclusive, a obrigatoriedade da mistura de unidades residenciais de alta, média e baixa rendas em seu tecido urbano, sem segregação e hierarquização por distância).

Não chega a espantar que as melhores informações sobre cidades e urbanismo venham de um economista e um jornalista. O que espanta mesmo é que não venham dos Cursos de Arquitetura e Urbanismo, e que a “cidade compacta” (e todas as suas necessárias características) não sejam um consenso entre os Arquitetos e Urbanistas.

O conhecimento real, aquele testado e aprovado, aquele que tem milhares de exemplos bem sucedidos, foi substituído por experimentos mal sucedidos e teses jamais testadas nos últimos 60 anos, como se fossem conhecimento, ou como se tivessem relevância equivalente.

Marotamente, foram apresentados aos estudantes como se fossem a grande novidade, a nova fronteira do Urbanismo ou o futuro das cidades. Sobre o urbanismo de Le Corbusier e Lúcio Costa, já temos a resposta. Sobre as cidades lineares no deserto, as flutuantes  e auto suficientes, ainda vai precisar de um tempo (para saber a resposta).

Mas sobre Paris, Madrid, Barcelona, Londres e Berlim (simbolizando umas mil cidades europeias), o veredito é mais que conhecido, e a ciência mais que satisfeita em todos os quesitos possíveis.

Como nada piora por acaso, devemos ter em mente que o corpo técnico que habita as prefeituras brasileiras foi todo formado ouvindo que Brasília funciona melhor que Paris, que o espalhamento territorial não é ruim (mas que adensamento é), que os afastamentos são bons, que ônibus e BRTs substituem o metrô, e que é natural que as famílias de baixa renda precisem morar muito longe, e em apartamentos e casas de baixíssima qualidade.

Não por acaso, a totalidade das metrópoles brasileiras vem “investindo” na redução dos coeficientes de construção, no aumento dos afastamentos e, por consequência, na redução do adensamento e no espalhamento territorial (ao mesmo tempo em que vão tornando a legislação cada dia mais restritiva). Tudo somado, a cidade piora, os imóveis encarecem e os orçamentos municipais derretem no transporte de massa.

Como um irmão mais velho sempre serve de modelo para os mais novos, as cidades médias e pequenas copiam o modelo, a gestão, o espírito e, por último, o plano diretor e a legislação propriamente dita.

Não tem como dar certo, claro, mas o meu alcance é limitado, se não pequenino. Quem sabe escutando Marcos Lisboa e Raul Juste Lores seja possível fazer alguma coisa?

Desejo Boas Festas a todos, e um 2024 de cidades mais bem geridas, e mais bem cuidadas!

O autor registrou autorização para reprodução do texto da coluna Geleia Urbana do jornal o Estado de Minas e do Caos Planejado na Newsletter da SME.

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