Os desafios para a eletrificação da frota nacional

Por Alexandre Bueno e Carlos Brandão

O transporte rodoviário eletrificado é uma tendência mundial, em função da praticidade dos veículos elétricos (VE’s), dos avanços tecnológicos na fabricação de baterias e veículos, com a consequente redução do preço final e o estímulo à adoção de tecnologias de menor impacto ambiental e menores emissões. Segundo dados da Associação Brasileira do Veículo Elétrico – ABVE[1], as vendas de veículos leves eletrificados fecharam 2023 com 93.927 emplacamentos – crescimento de 91% sobre as vendas de 2022. O Relatório Electric Vehicle Outlook 2023[2] aponta que a participação dos VE’s nas vendas globais de veículos novos de passageiros saltará de 14% em 2022 para 30% em 2026. Assim, a frota mundial deve passar de 27 milhões para mais de 100 milhões de veículos em dois anos.

Assim, será necessário discutirmos algumas questões relevantes, em especial aquelas ligadas à inserção de uma frota crescente de VE’s em curto espaço de tempo e sua repercussão sobre o suprimento de energia elétrica no país. São pontos relevantes:

  1. Impactos sobre a composição da matriz eletroenergética: segundo o Operador Nacional do Sistema Elétrico (ONS), 80,5% da capacidade instalada para produção de energia elétrica no país são de origem renovável (hidroelétrica, eólica, solar e biomassa), 18,5% de origem térmica fóssil (e cerca de 1% nuclear).

Da ótica da produção, em 2023, ano de boa hidrologia, 89% da energia vieram de fontes renováveis, sendo 66,8% hidráulica e apenas 8,9% de térmica (e 2,3% nuclear). Em anos de baixa hidrologia, como 2021, a fonte hidráulica respondeu por 62,6% da geração, e a térmica por 21,7%, aplicando-se bandeiras tarifárias[3] excepcionais[4], como a Bandeira “Escassez Hídrica” que adicionou R$ 14,20 a cada 100 kW.h consumido no mercado cativo.

Sendo um setor intensivo de capital, a adição de geração nova não é imediata, e deve ser precedida de estudos de capacidade, impacto ambiental, avaliação econômica e montagem de um “business plan”, que consomem entre 2 a 5 anos de estudos, a depender da fonte primária (hidráulica, no primeiro caso, e solar, eólica ou térmica a gás no último).

  1. Domínio da tecnologia: atualmente, o país tem tecnologia nacional e uma indústria capaz de produzir veículos convencionais, inclusive flex-fuel, importando apenas alguns componentes eletrônicos que os equipam. Contudo, não dispõe de tecnologia e cadeia produtiva para a fabricação de baterias e componentes específicos dos VE’s. O mesmo se pode dizer em relação à rede de oficinas para a manutenção desta frota, que requererá a adaptação das atuais oficinas e capacitação de pessoal técnico especializado.
  1. Rede de eletropostos: inexiste no país uma rede de eletropostos e sequer os tipos de carregadores e plugues dos VE’s são padronizados. Contudo, esta parece ser uma questão de menor importância em relação à eletrificação da frota; e sempre será possível absorver e replicar a experiência de outros países que já se depararam com a questão. O país tem dimensões continentais e uma malha rodoviária extensa, composta por rodovias principais e secundárias; a rede de eletropostos deve ter penetração suficiente para cobrir não apenas as rodovias principais, mas também as rodovias secundárias de menor tráfego.

A rede elétrica brasileira: os VE’s representam uma carga elevada, especialmente quando considerada a possibilidade de carga rápida, imponto um “stress” adicional sobre a rede elétrica, especialmente sobre a rede de distribuição de energia.

Como exercício, a eletrificação instantânea da frota atual demanda energia de quase 3 usinas de Itaipu[5] (geração anual média de 75 TW.h). É claro que a hipótese é materialmente absurda e, como hipótese, serve apenas como um balizador; mas mostra que o Brasil não tem, atualmente, energia e nem planejamento para atender a uma frota elétrica de grande porte. E, especialmente em períodos de hidrologia desfavorável, com a atual matriz energética, todo kWh de consumo adicionado é atendido por energia fóssil.

  1. Impactos tarifário e regulatório: Segundo a legislação atual, os investimentos em novas usinas e novos sistemas de transmissão e distribuição (que são elevados) devem ser suportados pela tarifa, seja através de leilões de Geração e Transmissão, onde o empreendedor considera, no preço ofertado, a amortização dos investimentos efetuados, seja através da inclusão dos investimentos em distribuição na base de remuneração das distribuidoras, sendo ambos repassados às tarifas do mercado regulado.

Assim, todo o investimento realizado no setor elétrico transfere seus custos de amortização, remuneração e O&M à tarifa de energia. Dito de outra forma, todo o investimento é socializado entre todos os consumidores do mercado cativo[6] e, no caso de uma grande frota eletrificada, vai atender a apenas uma parcela de consumidores (os donos de VE’s) de maior poder aquisitivo, socializando custos e concentrando benefícios. Todos pagam, e a parcela mais abastada da população se beneficia.

  1. Tempo de carga dos veículos elétricos: Há uma grande expectativa de todo o mercado de que a evolução tecnológica venha a atender à expectativa de autonomia (grande) x tempo de recarga (pequeno) para os VE’s. Hipoteticamente (e sem discutir questões ligadas à vida útil das baterias), abastecer um VE com a energia necessária para rodar a mesma quilometragem de um veículo a gasolina (considerando o dobro de eficiência em relação ao modelo a gasolina) em tempo equivalente ao abastecimento com combustível líquido, demandaria cerca de 7,3 MW durante 2 minutos[7], potência equivalente a cerca de 1.500 chuveiros elétricos na posição inverno. Obviamente, fornecer toda esta energia durante tempo tão curto requereria o uso de tensões mais elevadas e de condutores de elevada seção, o que parece ser inviável sob os pontos de vista econômico, elétrico, de manuseio e de segurança dos usuários.

Carregadores com potência de 50 kW (10 chuveiros na posição inverno) resultam em um tempo de 5 horas para abastecer o VE com uma energia equivalente a um tanque de gasolina (já considerada a maior eficiência dos VE). Atualmente existem carregadores rápidos[8], de 250 kW (cerca de 50 chuveiros na posição inverno), que reduziriam este tempo a cerca de 1 hora. Estes carregadores são mais complexos, destinados a postos de abastecimento, e não para aplicação residencial.

A análise apresentada demonstra a dificuldade em se imaginar um cenário tecnológico que consiga atender simultaneamente aos requisitos de autonomia e carga rápida esperado pelos usuários, por razões estritamente eletroenergéticas. Talvez este requisito de autonomia longa e rapidez de recarga seja alcançado apenas via substituição do rack de baterias descarregadas por outro, previamente carregado…

  1. Emissões zero: Veículos elétricos são muito valorizados e até mesmo alardeados como veículos de emissão zero. Contudo, entende-se que esta premissa não é verdadeira nem mesmo para as condições eletroenergéticas atuais do país. Uma avaliação mais ampla e conceitualmente mais completa deve considerar a “pegada de carbono[9]” (carbon footprint) de uma dada tecnologia. Assim, não bastaria considerar as emissões de Gases de Efeito Estufa – GEE durante a operação dos VE’s, mas incluir toda a cadeia produtiva.

Assim, considerado o ciclo de vida dos VE’s, há uma quantidade considerável de emissões de GEE e interferências ao meio ambiente para a produção das baterias, admitindo-se que o restante do VE se equipara ao veículo convencional. O Programa Mobilidade Verde e Inovação – Mover – lançado pelo governo federal ao final de 2023 trata desta questão, ao propor considerar todo o ciclo da fonte de energia utilizada, em um sistema chamado de “do poço à roda”, que será exigido juntamente com a avaliação atual, “do tanque à roda”.

  1. Tecnologia de baterias: o conjunto baterias – carregador – sistema elétrico é ponto chave no sucesso dos VE. Questões como a tecnologia ainda inexistente no país, impactos ambientais da prospecção e extração de lítio e outros minerais e descarte de baterias devem ser considerados. A tecnologia de baterias avança rapidamente, com pesquisas envolvendo baterias de estado sólido e tecnologia de íons de sódio. Há expectativa de que todos alcancem a comercialização nos próximos anos.

A densidade energética das baterias (kW.h/kg) também tem evoluído rapidamente. Atualmente, admite-se um valor típico de 0,2 kW.h por kg (baterias de estado sólido prometem duplicar esta densidade de energia), o que remete à questão do peso do VE. Considerando uma carga de 250 kW.h (para uma autonomia de 600 km) seriam necessárias baterias com um peso superior a 1,75 tonelada[10], levando o peso final do VE a cerca de 2,5 toneladas, já que tudo nele teria de ser reforçado. O resultado seria uma redução da eficiência do conjunto o que implicaria numa autonomia menor requerendo assim mais bateria para poder ter a mesma autonomia do motor a combustão.

  1. Programa Mobilidade Verde e Inovação – Mover[11]: lançado pelo governo federal no dia 30 de dezembro de 2023, o “Programa Mobilidade Verde e Inovação — Mover” busca apoiar o desenvolvimento tecnológico, a competitividade global, a descarbonização, a inovação de automóveis, de caminhões e de autopeças. A ação prevê incentivos para veículos sustentáveis e a realização de pesquisas voltadas às indústrias de mobilidade. O Mover também incentivará a neneoindustrialização do Brasil, com incentivos à pesquisa e a chegada de novas indústrias.

O programa criado pelo Ministério do Desenvolvimento, Indústria, Comércio e Serviços (MDIC) vai redefinir metas de descarbonização e sistema de medição de emissões, passando a considerar todo o ciclo da fonte de energia utilizada, em um sistema chamado de “do poço à roda”, que será exigido juntamente com o atual “do tanque à roda”. O Mover também passa a incluir “todas as modalidades de veículos capazes de reduzir danos ambientais”, ou seja, incluindo também ônibus, caminhões, componentes e bicicletas e motos. Não prevê, no entanto, recursos para pesquisas e estudos de expansão de fontes e de redes para atender o acréscimo de demanda e consumo decorrentes da eletrificação da frota.

Espera-se ainda muita evolução tecnológica, redução no tamanho e peso de componentes e ganhos de eficiência e produtividade na fabricação dos VE, o que levará à redução de custos e a uma efetiva competitividade com os veículos convencionais. Por outro lado, os VE’s apresentam melhor dirigibilidade, são mais fáceis de controlar do ponto de vista de sistemas autônomos de controle, têm maior eficiência, melhor desempenho e maior torque, além de manutenção mais simples e mais barata e custo operacional (recarga) menor que os veículos convencionais. Logo, não há por que duvidar da ampla e possivelmente rápida eletrificação da frota mundial.

Este texto procurou focar nos aspectos ligados à inserção destes VE’s na matriz eletroenergética nacional. Os agentes do setor elétrico, diretamente ou através de suas associações, devem ser envolvidos no debate sobre eletrificação da frota. E, claro, participarem de discussões sobre o suprimento desta nova demanda por energia elétrica.

Programas oficiais, como o Mover, devem contemplar não apenas a neoindustrilização do país, com o fomento ao desenvolvimento da nova tecnologia, sem esquecer possíveis impactos sobre a matriz energética do país e as exigências adicionais sobre o sistema elétrico em toda a sua cadeia produtiva: geração, transmissão e distribuição de energia elétrica.

Há ainda que se considerar impactos ambientais com a produção e descarte das baterias, possivelmente requerendo-se uma logística reversa para o recolhimento e destinação final de baterias em final de vida útil ou de veículos sinistrados.

Para o setor elétrico, nosso foco principal, imagina-se um rápido crescimento de demanda e consumo de energia, o que demandará novas usinas e grandes reforços nas redes de transmissão e distribuição. Assim, faz-se mister que os órgãos de planejamento e regulação, notadamente EPE, ONS e ANEEL abracem a questão e a discutam, de forma integrada e holística. E devem fazê-lo procurando antever possíveis mudanças no padrão de consumo de energia elétrica (e de combustíveis convencionais), permitindo uma transição suave e planejada na direção de uma matriz efetivamente descarbonizada.

Alexandre Bueno é engenheiro eletricista com especialização em Gestão de Negócios; é professor convidado da FGV em Distribuição de Energia; pós graduado em Engenharia Econômica pela Fundação Dom Cabral, MBA em Finanças pelo IBMEC e MBA em Especialização em Gestão de Negócios pela FDC e Institut Europeen D’Administration Des Affaires, INSEAD, França. Tem experiência nas áreas de Distribuição de Energia e Inovação do Setor Elétrico, com passagens de treinamentos e cursos Estados Unidos, Canadá, Japão, Espanha, França, entre outros. É coordenador da Comissão de Energia da Sociedade Min eira de Engenheiros – SME e representante da SME na Câmara de Atividades de Infraestrutura de Energia, Transporte, Saneamento e Urbanização da COPAM – Conselho Estadual de Política Ambiental de MG

 Carlos Brandão é engenheiro eletricista, pós graduado em Engenharia Econômica pela Fundação Dom Cabral e MBA em Finanças pelo IBMEC. Tem Especialização em Finanças pela Darden Business School da University of Virginia com passagens de treinamentos e cursos nos Estados Unidos, Canadá, Japão, Austrália, Alemanha, Inglaterra, Espanha, Noruega, Suécia, França, entre outros. Foi Vice-Presidente de Assuntos Regulatórios da AES Brasil e Presidente da Southern Electric Brasil. Atuou como Conselheiro Fiscal da Câmara de Comercialização de Energia Elétrica – CCEE, e nos Conselhos de Administração da CEMIG e do ONS. Atualmente é Diretor Presidente da CAE Consultoria e Administração em Energia” e sócio da D3 Energias Renováveis, envolvido com planejamento estratégico para executivos e grandes empresas no Brasil e exterior. É presidente do Conselho Deliberativo da SME.

[1] http://www.abve.org.br/2023-supera-todas-as-previsoes-94-mil-eletrificados/

[2] https://about.bnef.com/electric-vehicle-outlook/

[3] As Bandeiras Tarifarias são um valor adicionado ao custo da energia (em R$/kW.h) que emite um sinal de preço ao consumidor, informando que fontes mais caras (de origem fóssil) estão sendo despachadas

[4] https://g1.globo.com/economia/crise-da-agua/noticia/2021/08/31/governo-anuncia-criacao-da-bandeira-tarifaria-escassez-hidrica-acima-da-vermelha-patamar-2.ghtml

[5] https://www.itaipu.gov.br/energia/geracao

[6] O Mercado Cativo de Energia, ou Ambiente de Contratação Regulada (ACR), é formado pelos consumidores que têm acesso à energia com tarifas estabelecidas pelo Governo e pagam pelo serviço de distribuição e de geração de energia, entre outros encargos, na fatura da distribuidora local. São chamados de consumidores cativos.

[7] 250 kW.h em 2 min = 250 kW.h/2min = 250 kw.h.60 min/2 min = 7.300 kW, ou 7.3 MW

[8] Segundo dados publicados, o VE BYD Dolphin 2024 conta com autonomia declarada de até 291 km, de acordo com o Programa Brasileiro de Etiquetagem Veicular (PBEV). Sua bateria “Blade” (44,9 kW.h de capacidade) leva 30 minutos para carregar de 30% a 80% em uma estação de carregamento de corrente contínua (DC), que é uma estação “profissional’, isto é não residencial.

[9]pegada de carbono (carbon footprint – em inglês) é uma metodologia criada para medir as emissões de gases de efeito estufa durante o ciclo de vida de um produto, processos ou serviços, que considera as emissões equivalentes desde os processos industriais de produção até a efetiva disposição final de uma dada tecnologia;

[10] Baterias de Íons de Lítio não devem ser descarregadas profundamente, o que pode comprometer seriamente sua vida útil. O parâmetro que mede a descarga máxima recomendada pelo fabricante é o DoD (Depth of Discharge) e este valor varia segundo diversos parâmetros. Exclusivamente para efeito deste texto, admite-se um DoD máximo de 30% em situações normais de utilização das baterias.

[11] https://quatrorodas.abril.com.br/noticias/novo-programa-mover-entra-em-vigor-e-acelera-a-descarbonizacao-no-brasil/#google_vignette

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