O desastre no Rio Grande do Sul provocou uma rede de solidariedade às vítimas. Há grande valor nesse acolhimento, diante de tantas perdas. A Confederação Nacional de Municípios (CNM) desta sexta-feira, 24 de maio, aponta que os prejuízos já somam mais de R$ 10,4 bilhões, sendo R$ 2,4 bilhões no setor público. Mas muitas estruturas sequer foram avaliadas, como pontes e rodovias destruídas.
De certo, nesse contexto alagado, é omissão de tantos agentes públicos que subestimaram os alertas da ciência sobre eventos extremos. A 30ª Conferência da ONU sobre Mudanças Climáticas ganhou maior projeção com tantos brasileiros ao sul com a água no peito. A COP 30 está distante, e não por questão geográfica ou temporal. Líderes mundiais discutirão em novembro de 2025, em Belém (PA), temas como adaptação e mitigação climática, perdas e danos e a necessidade de maior financiamento às populações vulneráveis.
O conhecimento científico aponta caminhos. Ainda em meio à tragédia, correu entre autoridades a ideia da construção de um canal para melhorar o escoamento da água do lago Guaíba e da lagoa dos Patos. O ministro dos Transportes, Renan Filho, cogitou aplicar recursos públicos em estudos de viabilidade para o canal, que ajudaria a escoar a água doce no Oceano Atlântico na região de Rio Grande. O Instituto de Pesquisas Hidrológicas da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) publicou nota à respeito.
O texto aponta que “esse tipo de obra exige estudos detalhados, com uma visão multidisciplinar e interdisciplinar para avaliar os impactos positivos e negativos. Sem tais estudos, há pouca garantia de que uma obra desse tipo garantiria um rebaixamento significativo do nível d’água no Guaíba e na Lagoa dos Patos, que é governado por múltiplos fatores”.
De acordo com a análise técnica dos hidrólogos, a abertura de uma nova barra envolve riscos elevados: erosão das praias; salinização do Guaíba e da Lagoa do Casamento; efeitos negativos sobre o ambiente, a sociedade e a economia, afetando navegabilidade e a produção agrícola. Além disso, a nota destaca a necessidade de se considerar os elevados custos de implantação e manutenção do sistema, com operação complexa. “Uma obra desse tipo, sem as considerações necessárias, pode causar danos irreversíveis”, conclui a nota.
Lesa Pátria
O engenheiro agrônomo Fernando Meirelles, doutor em Recursos Hídricos e Saneamento Ambiental, integra a equipe de pesquisadores do IPH e diz que a ideia do canal é um desperdício. “É um crime lesa humanidade o tempo perdido com essa proposta. Essa ideia não vai funcionar. Mesmo que o canal rebaixasse o espelho d’água da Lagoa dos Patos em metros, o efeito em Porto Alegre seria de centímetros”, alerta. Meirelles, que já esteve em um evento na SME, tratando da Lagoa da Pampulha, faz outra alerta importante sobre o sistema de proteção da capital: a necessidade de manutenção contínua do sistema de proteção contra enchentes de Porto Alegre.
De acordo com o professor, a capital foi tomada pelas águas porque houve falhas na manutenção da estrutura de 68 quilômetros de extensão e conta com diques, casas de bombas e 14 comportas. “Não houve manutenção nas comportas, que não estavam com a vedação adequada. E isso gerou um colapso porque as bombas que drenam a água da cidade para o Guaíba não foram projetadas para ficar submersas. Os motores e quadros elétricos ficaram embaixo d’água e então os problemas se agravaram, especialmente na região central”, explica Meirelles.
Na região norte de Porto Alegre houve outro problema. O dique construído para ficar em uma posição foi alterado de lugar. Em uma ação emergencial, o Departamento Municipal de Águas e Esgotos (DMAE) tentou aumentar a altura do dique, mas a estratégia não surtiu efeito e ele se rompeu alagando bairros mais baixos.
Tsunami terrestre
Pesquisadores do Laboratório de Vulnerabilidades, Risco e Sociedade, da Feevale, e o Programa de Pós-Graduação em Qualidade Ambiental da Universidade produziram uma Carta Aberta com a análise do estado de calamidade do RS e caminhos para um futuro assertivo na Bacia Hidrográfica do Rio dos Sinos. O avanço da água nessa bacia provocou inundações em São Leopoldo outras cidades do Vale dos Sinos, importante polo industrial do estado.
O documento aponta que em 2023, houve os primeiros indícios inequívocos dos efeitos no Rio Grande do Sul associados às chuvas intensas, inicialmente pelos fenômenos catastróficos registrados na região de Caraá e posteriormente pelas inundações no Vale do Taquari-Antas, deixando um rastro de destruição ambiental e perdas incalculáveis, tal como um “tsunami” terrestre.
Segundo os pesquisadores, as mudanças do clima na região sul do país, de certa forma, já estavam visualizadas desde 2015, quando o próprio governo federal, através da Secretaria de Assuntos Estratégicos, publicou os estudos do Projeto Brasil 2040: cenários e alternativas de adaptação às mudanças do clima.
A análise aponta que medidas estruturais envolvem obras civis como as de contenção de cheias, com o conserto, manutenção e ampliação das existentes e a possível implementação de novas como a construção de barragens para a regularização de vazões, desassoreamento de canais, desentupimento de bueiros. Porém, por si só, as medidas estruturais não são capazes de resolver o problema, sendo necessária a implementação de medidas não estruturais, que inclusive são mais eficientes do ponto de vista social e menos onerosas do ponto de vista econômico
A partir das experiências na área e sensibilizados pela ocorrência de mais um desastre de tamanho impacto, os autores apontam algumas ações que devem ser tomadas de imediato na Bacia Hidrográfica do Rio dos Sinos, considerando um planejamento de curto, médio e longo prazo.
– Implantação de uma rede de estações de monitoramento hidrometeorológico em distintos pontos da bacia, para tornar as previsões hidrológicas mais acuradas, e esse sistema ser integrado às defesas civis municipais;
– Construção de um plano de adaptação climático, considerando as fragilidades ambientais, de relevo e hídricas, permitindo a participação popular ativa – priorizando a recuperação ambiental de banhados, matas ciliares, áreas de preservação permanente e revegetação no ambiente urbano;
– Adoção e investimento em sistemas de comunicação e alerta de fácil usabilidade pela população, com treinamento e simulados semestrais em todos os municípios detentores de áreas de riscos;
– Fortalecimento das equipes de defesa civil municipais, com investimentos nas estruturas disponíveis, treinamento e manutenção dos quadros técnicos, independente de mudanças política.
Observatório ATUAção
As recomendações dos pesquisadores da FEEVALE estão alinhadas às diretrizes do Observatório ATUAção, que busca capacitar os munícipes, em especial as lideranças públicas, na prevenção e na mitigação dos impactos advindos dos eventos hidrológicos adversos, em especial as chuvas extremas e as cheias consequentes. O observatório integra o programa Engenharia Solidária, da SME, e tem como objetivo ampliar e capacitar as populações na utilização de ferramentas de gestão de riscos, em especial a plataforma PROX.
O PROX foi desenvolvido pela CEMIG para estreitar o relacionamento com a comunidade com informações acerca da variação dos níveis e vazões dos rios e reservatórios das usinas hidrelétricas, objetivando o delineamento de ações integradas. Atua como uma ferramenta oficial de gestão de riscos pelos órgãos de resposta locais, relacionadas a áreas de risco referentes à ruptura de barragens, respaldada por um cadastro populacional e gerenciamento de sinalização de emergência.
Em um processo evolutivo, incluindo formalização de novas parcerias, o aplicativo PROX também tem um perfil específico para a Defesa Civil e mantém um contato permanente com os coordenadores desses órgãos nos municípios. Eles são avisados previamente, via “mensagens e alertas”, sobre todas as informações inerentes ao status da operação do reservatório/barragem.