Foto: Patrícia Boson
Patrícia Boson – Membro do Conselho Diretivo da Sociedade Mineira de Engenheiros – SME
A tragédia climática no Rio Grande do Sul, mesmo para quem, como eu, leu O Tempo e o Vento, de Érico Veríssimo, no qual a saga gaúcha é tão bem contada, está admirado com a fortaleza do povo gaúcho. São gaúchos e gaúchas em lágrimas, às vezes, mas sempre com um discurso de resiliência e reconstrução. Nenhum lamento, nenhuma queixa, nenhuma acusação, nenhuma postura de vítima. Não aguardam o que pode ser feito por eles ou elas, sequer reivindicam, fazem por si. Lembrando aqui Veríssimo, ao descrever suas heroínas: “apesar de fracas, resistem e garantem a subsistência e o futuro de seus descendentes”. A coragem desse povo diante de tamanha tragédia é, de fato, um exemplo admirável a seguir.
Essa tragédia traz também lições. Cito o Prof. Gerson Boson, filósofo do direito: “A natureza é inexorável fábrica do passado, e o ser humano, apenas inevitável fábrica de opções. A única opção que não podemos fazer é a de deixarmos de optar”. Junto a essa sabedoria o conhecimento de que a engenharia surgiu da necessidade de proteção das intempéries e da busca por alimentos do homo sapiens; avançou com a busca de explicações sistêmicas para problemas práticos, confrontando dogmas e o medo paralisante diante de velhos e novos desafios. Se a engenharia moderna se desenvolveu pautada no bem-estar das pessoas, a engenharia contemporânea se desenvolve na busca de mesclar, cada vez mais, as necessidades do ser humano e do planeta.
Nos parece assim, ainda mais desolador e trágico, diante do passivo material e das centenas de vidas perdidas que se acumulam em todo o Estado do Rio Grande do Sul, saber que o poder público tenha deixado de optar pela engenharia nacional e sua capacidade e domínio pleno sobre os problemas e as soluções para o enfretamento dos eventos hidrológicos adversos.
De acordo com atuais manifestos de inúmeras autoridades da engenharia, hídrica e hidráulica, todas as ações públicas, especialmente pós década de 1970, mesmo aquelas mais diretamente voltadas para a gestão, mitigação ou extinção de passivos para a proteção das intempéries, em que pese reguladas por lei (Lei nº 9433/97), nunca o poder público fora tão claramente negligente ao não privilegiar investimentos, capacitação e manutenção de um corpo técnico público voltado para o diagnóstico, planejamento e o engenho de soluções.
Não são poucos, eu mesma já participei de alguns, os planos e as soluções, insistentemente apresentados e apontadas pelos nossos engenheiros e engenheiras, e que hoje são pastas esquecidas em gavetas ou drives da burocracia. A retratar essa negligência, sequer nossos organismos técnicos e os funcionalmente competentes para o tema são comandados por especialistas. O governo brasileiro, há décadas, e no caso do Rio Grande de Sul, infelizmente esse fato fica tristemente evidente, não fez a opção pela sua função no campo da engenharia social.
E o pior acontece! Pelas desastrosas declarações sobre a busca por contratos internacionais e por apoio técnico em outros países, escancara o total desconhecimento sobre a capacidade da engenharia nacional, a exemplo do Instituto de Pesquisas Hidráulicas, IPH, de reconhecimento internacional e situado em terras gaúchas. O que lá fora fazem melhor e que aqui precisamos, sim, trazer e copiar é: acreditar, investir, optar pelas engenharias, na arte e no saber de engenhar soluções estruturais e não estruturais, e que tão bem dominamos. É triste constatar que estamos formando expertos em hidrologia e hidráulica para brilharem lá fora, ou para abandonarem seu saber e ingressarem em carreiras públicas mais atraentes ou no mercado financeiro.
Lição a ser aprendida: Engenharia já. Assim como gastamos 1,6% do PIB para manter um sistema judiciário, garantidor do direito a todos, com ênfase para a defensoria pública, que presta essencial assistência jurídica integral e gratuita, a partir da promoção de uma carreira pública atraente e valorosa, passou da hora de promovermos a engenharia social. Uma carreira para engenheiros e engenheiras, tão atrativa quanto as do sistema judiciário, com os mesmos benefícios econômicos, garantias e independência para atuação. Afinal, no dizer de Afonso Senna, “A engenharia como um todo, e a infraestrutura em particular, sempre foram, são e serão fundamentais para a melhoria da qualidade de vida da sociedade, e responsáveis maiores pela real inclusão social”.